A boa-fé nos contratos

Eduardo de Oliveira Gouvêa

A idéia de que os negócios jurídicos devem ser interpretados de acordo com a boa-fé significa que os contratos e os negócios jurídicos unilaterais devem ser compreendidos de conformidade com o seu sentido objetivo e aparente, salvo quando o destinatário conheça a vontade real do declarante, ou quando devesse conhecê-lá, se agisse com razoável diligência; quando o sentido objetivo suscite dúvidas, dever-se-á preferir o significado que a boa-fé aponte como o mais razoável.

Visa tal idéia de interpretação amparar a tutela da confiança do destinatário da declaração, bem como a assegurar o valor real da aparência, sendo tais elementos essenciais ao intercâmbio de bens e serviços e à segurança das transações.

Outra acepção do mister interpretativo da boa-fé é o que diz  respeito à significação  que se deve  atribuir ao contrato, quando contenha cláusulas dúbias, isto é, enunciados cujo próprio sentido objetivo seja obscuro.

Quando na presença de cláusulas ambíguas deve dar a primazia ao significado que a boa-fé aponte com o mais razoável, lançando mão dos paradigmas já consagrados pela jurisprudência pátria, a saber:

  1. a)  Prestigiando a aplicação do princípio da conservação do contrato, pelo qual deve-se escolher sempre, entre os diversos sentidos possíveis, o que assegure sua manutenção;
  2. b)  Pela reverência ao princípio do menor sacrifício, ou seja, pela idéia de que o contrato deve ser interpretado no sentido mais favorável á parte que assume obrigações;
  3. c)  Pela aplicação ao princípio da interpretação contra o predisponente, pelo qual se deve interpretar o contrato sempre no sentido mais favorável a quem não redigiu  suas disposições, aspecto esse  particularmente relevante no que se refere aos contratos padronizados e de adesão.
  4. d)   Na dúvida sobre a gratuidade ou onerosidade do contrato, presumir-se-á esta e não aquela.
  5. e)  No contrato seguido de outro, que o modifica parcialmente, a interpretação deverá considerarambos como um todo orgânico.
  6. f)  Interpreta-se o contrato de acordo com a conduta dos contratantes, ou seja, pelo modo como vinha sendo executado de comum acordo.
  7. g)  Sobrevindo dúvida entre clausula datilografada ou impressa, prevalecerá a primeira.
  8. h)  Nos contratos que contiverem expressões que de modo algum possam ter qualquer sentido, estas deverão ser rejeitadas como se nunca tivessem sido escritas.
  9. i)  Deve-se interpretar a cláusula do contrato atentando para os usos e costumes do local de sua celebração.
  10. j)  Nos contratos plurilaterais, deve-se interpretar a cláusula ambígua contra o estipulante, que poderia, mas não foi claro em sua redação.

Por função integrativa da boa-fé entende-se a idéia de que os deveres das partes não são, para cada uma, apenas o de realizar a prestação estipulada no contrato ou no negócio jurídico unilateral, mas que impõe também outros deveres corolários oriundos da convenção, a partir da análise da obrigação de uma perspectiva que quase poder-se-ia denominar de sistemática.

O principio da boa-fé regula não apenas o pacto contratual intencional invocado, mas ainda o reconhecimento desses deveres secundários (não diretamente pactuados) derivados mediatamente do principio, independentemente da vontade manifestada pelas partes, a serem observados durante a fase de formação e de cumprimento da obrigação. São deveres que excedem o dever de prestação. Assim são os de esclarecimento (informações sobre o uso do bem alienado, capacitações e limites), de proteção (evitar situações de perigo), de conservação (coisa recebida para experiência), de lealdade (não exigir o cumprimento de contrato com insuportável perda de equivalência entre as prestações), de cooperação (praticas de atos necessários à realização dos fins plenos visados pela outra parte), dentre outros.

Deste modo, nos contratos em que  se caracteriza a superioridade intelectual, econômica ou profissional de uma parte, e principalmente nos contratos de adesão, com suas condições gerais de negócios, deve-se invocar tal idéia de boa-fé para a eventual suspensão da eficácia do primado da autonomia de vontade, a fim de rejeitar-se cláusula violadora ou imposta sem o devido esclarecimento de seus efeitos, principalmente no tocante à inserção de responsabilidade do estipulante ou limitação de vantagens do aderente.

Esses deveres laterais de conduta como acima considerados, podem ser definidos como deveres que não interessam diretamente à obrigação principal, mas são, todavia, essenciais ao correto implemento da relação obrigacional na qual a prestação se integra. Nesse prisma, o cumprimento da prestação contratual somente atingirá seu escopo se vier á lume em prestígio ao princípio da boa-fé, que representa no moderno panorama contratual seu inafastável sopro de vida e fidedigna razão de ser e de existir.

Eduardo de Oliveira Gouvêa é mestre em Direito Processual Civil.

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